quarta-feira, 1 de maio de 2013

Padilha no Embalo


'Capela D'Ajuda já deu o sinal'

Bem colado no corpo. Andei com uma seta até a Igreja D’Ajuda. Saí acompanhada de uma bruxinha. Estava de salto quinze, meias arrastão até o meio da coxa. Maquiagem pesada. Tope. E uma blusinha pegada no corpo. Ela escolheu sair de preto e branco. Eu fui com O vestido tubinho vermelho – que deixou as pernas cabeludas à mostra. “Salto quinze pra andar nesse asfalto, nem pensar”, decide antes de sair de casa. Atravessamos a Ponte D. Pedro II antes do sol raiar. “Tá aproveitando”, ouvi de algum cafuçu no início da ponte. Era Embalo D’Ajuda. Terno da Alvorada.
As vadias iriam tomar conta da rua.
Paramos na frente da Igreja D’Ajuda e ainda não tinha sinal de outras. Meu coração palpitou. Senti o frio da madrugada. A incerteza se outras viriam. “Isso vai furar”, pensei. “E aí, tô gostosa?”, me perguntou outra vadia. Essas eram piriguetes. Não reparei bem no modelito delas.  “Cadê o restante do pessoal?”, me perguntou. “Tão por aí, perdidas”, respondi. Onde vai ser o encontro?. No embalo. A bruxa ficou insegura.
Paramos no bar de Seu Lomba. Tomamos algumas cervejas até avistar a descida da fanfarra para o Caquende. Chegaram o Gato e a Vagabunda. “Uma prostitua de luxo”, pensei. O Gato ficava na coleira dela. Altos. Já estávamos em Marcha. A primeira parada foi na Igreja do Conjunto do Carmo. Quando a Fanfarra desceu para a Rua dos Bregas, encontramos as demais. Fotos. Faixas. Cartazes. Corpos pintados. Corpos másculos sob vestidos coladíssimos. Corpos femininos sob poucas roupas. Ninguém era de ninguém. A excitação começou a tomar conta da rua. Subimos e descemos as ladeiras da cidade histórica e heroica. Sob o sol escaldante das sete horas da manhã a Padilha tomou conta de mim.
Era mesmo eu? O que mais estava presente no Embalo? O que mais estava presente comigo?
Girei a cidade sob o vestido vermelho.
Geisy Arruda compareceu à Marcha. “Expulsa da Uniban”, trazia numa plaquinha. Panfletária. Por um momento paramos de Marchar. Quando a fanfarra fez silêncio, no alto da Rua da Feira. Os homens da fanfarra tomaram uma cerveja. Nós recitamos um jogral. “No Brasil”, alguém dizia. “No Brasil”, repetíamos. “Uma mulher é morta a cada”... e nós repetíamos. Acabou a cerveja, tomamos conta da rua.
Eu era a própria Cabeluda. Uma mulher com pernas sem donos. No gira gira terminei com os pés doloridos. Mas O tubinho vermelho, ele ainda está intacto. 

Manual para o presente




Eu não aguento mais carregar o meu coração. Tome-o aqui. ele precisa ser regado três vezes ao dia e especialmente no início da noite e outra vez na madrugada. Coloque dentro de um jarro. Coloque na janela até as 9h da manhã e depois somente a partir das 15h. Não o deixe na janela e em tempos de frio, use um aquecedor. Deixo-o dentro de casa. Talvez receber um pouco de chuva também seja bom. Mas cuidado pra que ele não fique doente. É a coisa mais preciosa que eu tenho. Estou lhe dando o meu coração por que já não aguento mais carrega-lo. Também, por esse motivo, arranquei ele do meu peito. Meu coração pesa em toneladas. Se daria bem no oceano. E seria uma grande baleia. Maior do que qualquer história de pescador. Maior do que a que engoliu Pinóquio. E não pesaria tanto a ninguém. Viveria em águas profundas e apenas subiria pra tomar um sol. Mas veio um coração e dentro do meu peito. E já não aguento mais carrega-lo. Já disse isso, não disse?! Ele é forte, ele é lindo, ele é intenso. Talvez seja a melhor coisa que uma pessoa possa ter nesse mundo. Mas eu não aguento mais carrega-lo. Ah, ele também joga. Converse com ele. Ele pode dá ótimos conselhos. Pode fazer qualquer um a pessoa mais feliz do mundo. Mas converse com ele. Não o deixe só. É a coisa mais preciosa que eu tenho. Ele não responde muito as perguntas. Prefere dizer o que tem que ser dito e tudo mais manda pro inferno. Temperamental? Não. É apenas um coração. Todo coração que se preze, creio eu, é assim. Diz o que tem que ser dito, faz o que tem que ser feito. Eu é que sou fraco. Acho que ele merece se afastar de mim e encontrar alguém que cuide dele. Que o embale no sono. Que o beije ao acordar. Que viva por ele e com ele e nele também. Sentimental? Talvez. Mas é isso, estou lhe dando um coração. É como se fosse uma plantinha. Uma grande semente que se arvora pelo corpo. Mas ele também pode regredir e voltar a ser semente. Quando árvore, pelo corpo, toma as veias, os pulmões, o cérebro, a buceta, o cu, os cabelos, os olhos, a boca, as orelhas e o pé. Quando árvore, irradia, transcende, quebra qualquer barreira pra brotar. E brota feito fonte de petróleo. De vez. Jorra, na verdade. Feito lava de vulcão. E qual o segredo pra ele arvorar sobre o corpo? Aqueça-o. corações precisam ser aquecidos pra jorrar. Toque nele. Aquecer um coração só é possível tocando nele. Mesmo se ele estiver em jarro ou no fundo do oceano. Ou num corpo. Toque nele e verá ele aquecendo e jorrando e tomando seu corpo. Talvez outra pessoa toque. Isso pode ser um problema. Aí ele pesa. Vira uma árvore milenária e incendiária em seu corpo. Uma imensa baleia com jorradas d’água que alcançam o céu. Pesou pra mim e por isso o arranquei do peito. Se estiver no oceano, a baleia não pesa. Se estiver na Terra, a árvore não pesa. Quando ele estiver pegando fogo, na Terra ou no oceano. Abrace-o. A árvore pode se curvar e vai te aquecer também. Cada veia. A íris do olho vai brilhar. A boca vai se escancarar. É forte, é intenso, é um coração incendiário. Esse é o coração, [você quer de presente?] [ parabéns, você acabou de ganhar um]

P.S.: Cavalo dado, não se olha os dentes. 

sábado, 16 de fevereiro de 2013


Aquele momento que quase viu. Ela recuou quando bateu o olho em mim. Eu estava como um cavalo de corrida na Avenida Sete. Visão delimitada, rapidez, foco e pouca lucidez. Pra uma corrida só é preciso saber ser veloz. Olhar os obstáculos que vem. As pessoas que passam. Desviar das que só podem se esbarrar em você. Se esbarrariam em mim. Mas ela estava sentada. Num instante nossos olhos se encontraram. Ainda sentada, ela recuou. Virou o rosto ao me ver. Que terá ela visto? Não pensei. Parei poucos passos à frente. Ela chegou mais rápido na largada que o mais veloz cavalo de corrida. Passou por mim e quase não vi. Talvez tivesse asas. Talvez estivesse na largada. Olhando para mim fixamente em meio à poeira e à multidão e aos sons dos pés que galopavam. Ninguém se esbarrou em mim quando parei. Voltei. 

O que ela terá visto?

Os poucos passos, a parada, o retorno ficaram presos nas horas daquele momento.

E não houve obstáculo na volta. A volta, para um cavalo de corrida, é como se esbarrar em outros cavalos. É como ter perdido o foco e razão. Virou às costas para a chegada e está na direção oposta. Indo para a saída. Não há coroa de rosas. Não há fotografias. Não há afago. De fato, um cavalo de corridas louco. O que eu acho que ela teria visto? Por que o que ela pode ter visto a fez recuar? Por que voltei?

Ela recuou e eu retornei.

Mais lento, caminho livre, perguntei: a senhora viu, não viu? A velha saudou que sim. Levantou e baixou a cabeça. Dei as costas e segui para a chegada.

O que ela viu está em mim. Eu, cavalo de corrida veloz e louco. Parei. Mergulhei num rasante. Fui ao encontro dela. Eu era aquela mulher recém-parida. A mulher torta que não cambaleia. Um passo firme no chão. 

domingo, 14 de outubro de 2012

Mais fôlego




Nuvens de Almodóvar. Passamos a noite inteira verificando os formatos que as nuvens poderiam ter. Seja pelo ângulo vazado, seja pelo ângulo preenchido. Eu estava inerte naquele transe mágico. Vi fadas. Vi grandes círculos no céu. E também vi o que só você poderia mostrar. A madrugada tinha sido gentil. Mas a qualquer momento o dia poderia raiar. Você me chamando pra ir dá um rolé foi um susto. Âncora no mar: desci do mundo das nuvens e seus formatos. “Fazer o quê?” “Ah, dá um role, mermão!”. Achei que fosse cilada. Recusei.

As noites passavam e você cada vez mais insistia no mundo das nuvens. Chega no meu trabalho na hora que eu encerrava expediente. Me oferecia uma pizza e um gole de sua bebida. “Estou no meu horário de trabalho”, o tacanho respondia. “Man!” era o nome que ele me chamava e que até hoje ouço olhando as nuvens. “Mas me diga uma coisa, você me chama de ‘man’ por que você gosta ou porquê você não sabe meu nome?” . “É man, agora você me pegou.” Respondeu o internacionalizado.

- O que são essas conversas que você insiste em ter comigo? Perguntei.

- Papo de homem. Ele respondeu.

O dia em que resolvi fazer uma massagem nele. Acordei com aquele corpo deitado – estirado – sobre a cama de solteiro ao lado. Nem calor, nem frio. “É a única coisa necessária a se fazer”, pensei. Achei os nós de tua coluna. Os pontos de ombro. As conexões de teu corpo. A firmeza da perna. As fissuras do teu rosto.

Uma hora inteira sobre cada ponto de teu corpo. Repentina saída do café da manhã:

- Massagem digna de Oscar. Ele disse enquanto eu pensava: será se foi um filme de ficção científica?

- Agora você pode dizer que teve uma madrugada excelente com outro man, Man. Respondi.

- Vamo dá um rolé?

- Pra onde? Retruquei.

- Pela cidade, Man.

Nada de nuvens nessa madrugada. Apenas suco de laranja e dois mistos quentes, por favor. Fui para o camping. Nos vimos novamente no final da tarde. Antes das seis, que era o início de meu expediente. Não foi para almoçar e lavar os pratos e me matar de vexame como da última vez. Botou esse: mas será que elas não se pegam nem sequer de brincadeira? Preferia as conversas das nuvens. E que tomássemos seus formatos. E que falassem “man” aos pés dos meus ouvidos como eu fiz contigo. No dia em que resolvi fazer uma massagem em você.

Mas não terminaremos sem uma aventura precipitada com risco de morte. O pôr do sol na Ponta de Mutá. Pôr do sol com maré baixa. A ideia de partir para o outro lado foi sua, sem contar que a maré poderia subir. Jogamos areia uns nos outros. Disputamos quem saberia nadar no mais profundo. Quem tinha mais fôlego. E voltamos com a maré cheia.

Foi uma sensação de bêbado. O mundo rodando devagar. As coisas não estavam acontecendo e não havia nenhum perigo. Minha amiga não estava se afogando. Você cruzou pelo outro lado – onde a correnteza se dissolve – e estendeu sua mão. Não foi para mim. Mas eu também sabia nadar. Minha vida não esteve em risco, murmuro. E você ficou dois dias a mais do que tinha planejado.

A partir de súplicas, beijos e abraços. Dormimos pela segunda vez juntos. E dessa vez foi um desastre. Vodka com red bull nos nossos copos. Era uma banda com integrantes da Frejat que tocou Tim Maia. “Vou morrer de saudades”, olhávamos sem graça uns para os outros. Te avisamos que estávamos partindo e você disse que logo chegaria. Esbarrei em todos os cômodos até achar a chave no escuro. Carreguei bêbadas para sua cama de solteiro. Cuidei, até, para que não engasgasse no vômito.

Você chegou para fazer alguém gemer.

E eu ouvi tudo.

Acordamos na resenha, fizemos um almoço. Fui para o trabalho. No dia em que você foi embora, eu pensei: vou morrer de saudades. Me conquistou. Achei que o amor fosse possível como fadas em nuvens.