quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Ceu


Tenho quebrado copos de vidro ultimamente. E espero que seja um sinal grego. Que o trincar do vidro virando cacos virando pedaços no chão, me traga sorte. não há mecanismo que me faça ter a sorte dos casamentos bem feitos, com porcelanas ao chão. No lugar de jogar os copos, tenho jogado amarelinha com o amor.
Os meninos que me passaram. Os relacionamentos sérios que nunca chegam. Realmente penso nunca chegarão. E de março em março, invento desculpas a isso e aquilo. Acho que sou um pêndulo que parou o movimento. Sem tempo, sem oscilação. Será que foi o caminho que escolhe?
Por que escolher a infelicidade?
Não, nenhum deles pode me dizer que não me dei por inteiro. Essa é a única coisa que sei fazer.
Mas também nunca me vesti de noiva.
Já lavei a casa com sal grosso. Alfazema e incenso. Tive os cacos que disputei até que sentissem meu sangue correndo. Ou coração palpitando mais forte. Ou notassem quantas ligações receberam em um dia. Ínsito em ter um amor platônico. E, sinceramente, isso é um elefante branco. Uma comédia.
Que necessidade é essa? Por que essa necessidade?
Sobre a dor sei muito bem. As vontades de quando não se chega ao céu. Bloco de notas, estudos e café. Cigarros e café. Café. Noites esticadas. Festas e sado-masoquismo. Sado-masoquismo. Aflição e descaso.
E eu não sou o garoto que joga a pedra na casa. Sou o jogo. Pinto de amarelo, dou a pedra. Mentira. Eu também agarro com forças. Eu também movo o caminho que quero. Eu quero. E quando não há nem jogadores, nem casa marcada, dou meu corpo aleatoriamente. Sem desculpas, sem insistência.
À alguém que queira.
Que borre lambendo os demais quadrados. Chupe essa pedra. Me deixe perder a consistência. Alguém que caminhe, não pule de casa em casa.
Talvez não possa me vestir de noiva. Talvez não possa colocar uma grinalda no céu. Talvez nem possa ser o céu.
Não conheço o amor e seus jogos, e isso me dá o gosto de um pássaro recém-livre todos os instantes.
Seria jogo se ao meu corpo de homem me desse uma cafetina?
Há alguém que queira? Há alguém que quero?
Se os noivos se vestissem de amarelo. Se não existissem cavalos brancos, talvez eu mesmo pudesse ser pássaro-recém-livre. Não, eu seria o céu. 

domingo, 23 de outubro de 2011

Arapuca de Dragão

Chegou em casa com os trejeitos de cinzeiro. Subiu as escadas e tombou sobre a cama. Desde as dez horas ouviu o chamado de seu nome para comparece à cozinha. Fingiu ser alucinações, culpou o sol quente e o mormaço e se deu mais vinte minutos. Com a cara chapada ainda e as marcas dos lençóis andou pela sala, ultrapassou o som da TV, lavou o rosto sem decidir se esse era um dia real ou não. As pernas latejando como se fossem um coração. Um gosto da cinza que fica na superfície rebaixada. No fundo.

Seu pai assistindo aquele programa sem qualquer finalidade e que ela acreditava dar tanta importância quanto ela mesma. “É o homem no centro do universo”, pensou ela. Uns gritos de seu sobrinho. E ainda nem era a hora de pico. Faltavam meia hora para as doze.

Procurou um café e encontrou cebola não-picada, pimentão sem cortar, arroz sem fazer, feijão no fogo, nenhuma salada ou um gole de café bem passado.

Ainda sob a tempestade que se formava decidia se era ou não um dia real.

Ela mesma perguntava se não era uma miragem sua. Um oásis decaído, sem forças pra ser uma beleza em meio a um deserto vivo. Queria ela mesma ser enigmática como um sorriso. A pergunta que sai da boca da esfinge. Castigou o estômago. Um dragão nas suas formas arredondadas. Uma pequena-burgesa-dragoa. Antes de suas asas abrirem, sentiu a corrente de ar passando.

Ela conhecia essa tempestade. E depois dela não vem a bonança.

Bebeu água, kisuku de laranja-lima, mas o problema era a garganta úmida e fria. Sob os olhos de seu pai, sob o teto dele, não poderia fumar, nem mostrar suas escamas.

Um caos de engarrafamento na sala de casa. Muito som, muito trânsito, muitos relâmpagos buzinas e buzinas relâmpagos. Muitos dedos-na-cara, muitos raios. Muita correria, muito salve-se-quem-puder ou em outras palavras: cada um que salve o seu.

Tinha a sensação de dejà vu. Ela própria pré-vista por alguém. Como uma grande embarcação que só herdava as pessoas e seus papéis. Cronometrou o feito pelas partes desse todo: sua mãe: irá levar o sobrinho à escola; os demais: fugir da louça procurando suas válvulas de escape.

Em um segundo, apenas ela e o pai na sala. “Ouxi...”-alguma coisa mal compreendida, disse seu pai.

No silêncio da sala, o pai ouvia delicadamente cada grito da garganta dela. Os goles de saliva descendo goela abaixo. O coração batendo no teto. Ele, por vez, calçou as sandálias. Saiu para a rua e deixou o ventilador da sala ligado.

Ela subiu as escadarias que davam acesso à laje para fumar seu cigarro com o sol, e afastar o transtorno com o vento. Um sorriso consumindo fogo no calor abrasante.

Olhava para o sol, sentia o calor completo no seu corpo, a cada tragada. Destravou o cigarro dos dedos e segurou com os lábios. Fechou os olhos. No que aspirou, pensou: desceu quente essa. No que inspirou, o calor já não lhe subiam pela laje da casa. Não era reflexo do sol. Pouco menos a chama do cigarro. Vinha de dentro. Um lugar entre os pulmões e as células do corpo. Caminhando por cada veia. Fumegou a casa. Não. Não era um dia real.

domingo, 3 de abril de 2011

Pimenta do reino

- Não poderia ser outro? Tanta gente nesse cartório e logo eu! E tão cedo! O homem nem deve ter acordado essa hora. Isso vai me dar um trabalho...


Às oito horas da manhã, Claudio sentou na Praça do Relógio. Olhou bem para o ponteiro dos minutos e das horas e lá fixou seus pensamentos. Suando frio, contando os segundos com os dedos, esperando a hora certa de entregar a petição. Trocou dois dedos de prosa com ágluem de dez minutos. Leu a petição mais uma vez. Uma petição de dois minutos. Falou com a senhora sentada na porta, que acompanhava seu marido a abrir o bar. Processo de quinze minutos. Ensaio durante o intervalo: maneiras de entregar o ofício que tinha em mãos. Ensaios de meia hora. E o ponteiro grande não chegava no nove. Limpou o suor do rosto e encarou de frente seu momento.


A jenala do destinatário havia sido aberta. Talvez todos tivessem acordado. Talvez teriam já tomado café. E, assitino Ana Maria, não estivessem tão chateados com o dia. Já não havia lixo na porta da casa 19, e era comum que os moradores desta acordassem cedo. Mas não se poderia bater à porta de alguém antes das nove. Antes disso, teria chegado para o café. Depois disso: para o almoço. Qualquer uma das opções soaria como ofensa depois de usufruir da presença e do alimento do dono da casa.


Resolveu que era hora. E fizera bem em vir com fome. Engoliria as palavras para não errar demais. Caminhou lentamente até a casa. Na sorte do rio secar de uma só vez, e que lhe fosse mandado fazer algo de importantíssima urgência no Fórum local. Mas o calor não estava para tanto, e Deus, provavelmente não estava ao seu lado.


Ainda sem certeza de qual discurso proferir, tocou a campainha. E achou que começaria a pensar em mudá-la, já que o som dela era fino e estridente. De alguma maneira o lembrava o tempo do colegial no qual a sirene tocava e todos teriam que voltar para a sala antes da ronda da rabugenta supervisora.


Achou que podia ouvir os passos dele. Era ele. Sem a menor possibilidade do rio secar, era ele. E o relógio nem contava nove horas. Ainda eram dez para as nove. Mas a campainha já soara e não haveria como voltar à traz. “Dez minutos para rio secar. É isso que eu tenho.”, pensou.


Dessa última conferida no seu mapa astral, o homem abriu a porta:


- Seu Nestor, bom dia! Como vão as TV’s? O negócio deve ta uma fartura que só. Nem abriu as oito hoje.... A expressão do homem não havia mudado. Hm... cheiro bom. Parece que tem bolo no forno.... Mas eu não quero entrar. Não Seu Nestor, muito obrigado pelo convite. É que eu comecei a trabalhar cedo hoje. Por sinal, tem uma coisa pra entregar para o senhor.


Queria ele que fosse Natal, para entregar um belo presente do Fórum ao homem que já havia visto o papel em sua mão desde quando ele chegou.


- É esse papel aqui. Tenho de lhe entregar isto. O senhor, por favor, assina aqui?


Olhou nos olhos de Nestor enquanto ele lia o que estava escrito no papel. Sentiu que Seu Nestor começara a mudar de expressão. O coração começou a bombear mais sangue para o corpo. Em todos os seus vinte anos de fumante jamais achou que poderia sentir tanto fôlego no peito. Concentrou sua audição no relógio novamente. E os segundos soavam como as horas. E a fala lhe foi mais rápida que as pernas:


- Olhe Seu Nestor, eu não fico feliz em lhe entregar isto. Mas seu vizinho está lhe acusando de assédio moral. É, não sei de onde ele inventou essa. Mas chegou lá Fórum dizendo que já não agüentava mais o senhor querer mandar na casa dele. Que o senhor reclama do momento que ele abre o portão até o momento que ele faz dengo no namorado. Onde já se viu?! Mas eu não li isso não. Sei pela boca pequena. Então o senhor assina aí. Que eu preciso entregar a segunda via lá no Fórum. E, pelo que me disseram, se o senhor não assinar, Nadinho Polical tem que vim aqui lhe buscar...


Seu Nestor assinou com os olhos. Claudio percebeu não teria pulmão para acompanhar Nestor na busca de fôlego. Olhou a página assinada, agora tremilicando. Nem ele viu o portão se fechar, nem o homem viu suas costas. Correu para o porto e pensou em se jogar no rio. Por que ele tinha fé em Deus e ainda eram sete para as nove.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Desenho rupestre em letras garrafais


De longe, Astolfo poderia retirar a paciência de qualquer um. Ele parecia uma velha coruja com ares de águia. Olhando bem para os falantes, mesmo os menos apreensivos, eram contagiados por sua expectativa. Era algo como um falso conforto. Uma angustia petulante, que fazia deste homem o inverso do que ele planejava. Bola de pedra. Quanto mais se concentrava nas palavras alheias, como que prestando mesmo atenção, ele colocava outras cem em suas mentes. Todas pequenas indagações. Afora o “de onde nós viemos?” “para onde nós iremos?” “quem nós somos?”, ele fazia suscitar outras de tamanha importância: há algo de errado na minha blusa? Falei merda? O que ele está olhando?

Eram olhos argutos, sábios de procurar uma falha. Ninguém escapava das ponderações de Astolfo.

Talvez aqueles que diziam, sentado atrás de uma mesa, o conhecessem bem. Levassem consigo a mescla de prepotência com a mais sincera humildade que emanavam daqueles olhos castanhos escuros, seguidos de uma mão no queixo sem barba. Pire aí, um palhaço olhando seriamente para dentro da platéia. Sem graça, sem piada, mas com um cerco encantado que lhes inspiraria descontentamento. Era isso, um palhaço sóbrio, rústico e cheio de certezas a respeito do mundo.

Ele, ali sentado, com cara de palhaço sem piadas, denunciava suas verdades.

O destino de Astolfo parecia ser a busca das palavras. Ele cambaleava nos movimentos dos enunciadores. Buscava cada letra formadora. Poderia prevê a sentença vindoura. Não seria surpresa se conhecesse o texto melhor que os leitores. Todavia, eles estavam escondidos atrás páginas. Sentiam o cheiro, de relance viam, e tinham consciência da presença dele. Aqueles olhos bem treinados e cheios de poesia.

Mesmo ali sentado, ouvinte, o palhaço não estava fazendo sua folia. Estava ensinando suas técnicas, seus modelos, sem mencionar. O palhaço não falava ao público, apenas os exprimia, como que do silêncio se aprendesse a manifestar a poesia. A inanição do nascer de uma rosa bordada no ombro do artista.

A cadeira qual ele estava sentado não se conformava. Astolfo se mexia, trocava o cruzamento das pernas, se apoiava em um braço, depois em outro, se remexia como uma minhoca debaixo do solo. Fertilizando e fazendo respirar aquilo que nem todos viam, ou só percebiam o produto. E era um vai-e-vem transparente para qualquer que olhasse mais afundo.

O que Astolfo pensava? Queria ele que tudo saísse perfeito? Ou Astolfo apenas se importava com o incômodo pelo que outrem passava? A esfera, as paredes poderiam afirmar, não era tensa. Astolfo já deveria ter absorvido tudo para si. Com seus sorrisos de mascar tristeza, ou suas piadas de sodomizar a aflição. A poltrona já se suspeitava que ele estava a lhe paquerar. Astolfo não parava de bater seus dedos no braço dela.

Mas ele se manteve sentado... os de vistas sóbrias diriam. A poltrona, certamente, queria entrar na mente de seu irrequieto usuário. Descobrir o que lhe incomodava, ali, distante, naquele lugar que ela mesma achava um pouco desprestigiado. O sol não chegaria, mas o vento também era fraco. Quem sabe ele estivesse sofrendo por causa do calor. E revira-se como um cachorro na terra para aliviar-se.

Nem suas mãos estavam gélidas, ou seus pés frios. Era só o estralo dos dedos, ou o choque entre os dentes e a unha que fazia crer de sua impaciência. Não saiu de cima dela por um instante, nem para ir ao banheiro ou beber uma água. Qual grau de parentesco dele com Sansão? Deveria ser o não-primo distante de outra encarnação. Seu cabelo bem cortado e grisalho, seu corpo enxuído... Os nós de sua coluna deveriam ser por sua alocação nessa árvore genealogia. Tendo como semente, Sansão.

Um suspiro de ambos. A coluna de Astolfo agora estava relaxada sobre os apoios dela. O assentado tornou o lugar menos úmido. A poltrona se sentiu menos inútil, na relação que estava mantendo era o próprio adubo artificial. O vento começou a passar por ali. Grandes penas caíam sobre o chão. Assim como um bico, unhas... a poltrona havia mentido. Astolfo era uma águia com a perspicácia de uma coruja.

Não. Não somente. As palavras cessaram e o circo cujas lonas coloridas prendem esse pássaro não se desfizeram. Astolfo era ou estava do outro lado da graça. Como um jovem que velho está. Ele era um livro parido.