domingo, 3 de abril de 2011

Pimenta do reino

- Não poderia ser outro? Tanta gente nesse cartório e logo eu! E tão cedo! O homem nem deve ter acordado essa hora. Isso vai me dar um trabalho...


Às oito horas da manhã, Claudio sentou na Praça do Relógio. Olhou bem para o ponteiro dos minutos e das horas e lá fixou seus pensamentos. Suando frio, contando os segundos com os dedos, esperando a hora certa de entregar a petição. Trocou dois dedos de prosa com ágluem de dez minutos. Leu a petição mais uma vez. Uma petição de dois minutos. Falou com a senhora sentada na porta, que acompanhava seu marido a abrir o bar. Processo de quinze minutos. Ensaio durante o intervalo: maneiras de entregar o ofício que tinha em mãos. Ensaios de meia hora. E o ponteiro grande não chegava no nove. Limpou o suor do rosto e encarou de frente seu momento.


A jenala do destinatário havia sido aberta. Talvez todos tivessem acordado. Talvez teriam já tomado café. E, assitino Ana Maria, não estivessem tão chateados com o dia. Já não havia lixo na porta da casa 19, e era comum que os moradores desta acordassem cedo. Mas não se poderia bater à porta de alguém antes das nove. Antes disso, teria chegado para o café. Depois disso: para o almoço. Qualquer uma das opções soaria como ofensa depois de usufruir da presença e do alimento do dono da casa.


Resolveu que era hora. E fizera bem em vir com fome. Engoliria as palavras para não errar demais. Caminhou lentamente até a casa. Na sorte do rio secar de uma só vez, e que lhe fosse mandado fazer algo de importantíssima urgência no Fórum local. Mas o calor não estava para tanto, e Deus, provavelmente não estava ao seu lado.


Ainda sem certeza de qual discurso proferir, tocou a campainha. E achou que começaria a pensar em mudá-la, já que o som dela era fino e estridente. De alguma maneira o lembrava o tempo do colegial no qual a sirene tocava e todos teriam que voltar para a sala antes da ronda da rabugenta supervisora.


Achou que podia ouvir os passos dele. Era ele. Sem a menor possibilidade do rio secar, era ele. E o relógio nem contava nove horas. Ainda eram dez para as nove. Mas a campainha já soara e não haveria como voltar à traz. “Dez minutos para rio secar. É isso que eu tenho.”, pensou.


Dessa última conferida no seu mapa astral, o homem abriu a porta:


- Seu Nestor, bom dia! Como vão as TV’s? O negócio deve ta uma fartura que só. Nem abriu as oito hoje.... A expressão do homem não havia mudado. Hm... cheiro bom. Parece que tem bolo no forno.... Mas eu não quero entrar. Não Seu Nestor, muito obrigado pelo convite. É que eu comecei a trabalhar cedo hoje. Por sinal, tem uma coisa pra entregar para o senhor.


Queria ele que fosse Natal, para entregar um belo presente do Fórum ao homem que já havia visto o papel em sua mão desde quando ele chegou.


- É esse papel aqui. Tenho de lhe entregar isto. O senhor, por favor, assina aqui?


Olhou nos olhos de Nestor enquanto ele lia o que estava escrito no papel. Sentiu que Seu Nestor começara a mudar de expressão. O coração começou a bombear mais sangue para o corpo. Em todos os seus vinte anos de fumante jamais achou que poderia sentir tanto fôlego no peito. Concentrou sua audição no relógio novamente. E os segundos soavam como as horas. E a fala lhe foi mais rápida que as pernas:


- Olhe Seu Nestor, eu não fico feliz em lhe entregar isto. Mas seu vizinho está lhe acusando de assédio moral. É, não sei de onde ele inventou essa. Mas chegou lá Fórum dizendo que já não agüentava mais o senhor querer mandar na casa dele. Que o senhor reclama do momento que ele abre o portão até o momento que ele faz dengo no namorado. Onde já se viu?! Mas eu não li isso não. Sei pela boca pequena. Então o senhor assina aí. Que eu preciso entregar a segunda via lá no Fórum. E, pelo que me disseram, se o senhor não assinar, Nadinho Polical tem que vim aqui lhe buscar...


Seu Nestor assinou com os olhos. Claudio percebeu não teria pulmão para acompanhar Nestor na busca de fôlego. Olhou a página assinada, agora tremilicando. Nem ele viu o portão se fechar, nem o homem viu suas costas. Correu para o porto e pensou em se jogar no rio. Por que ele tinha fé em Deus e ainda eram sete para as nove.